No princípio era o Verbo
No princípio era o Verbo."Princípio" e "era", diz Basílio, são como duas âncoras nas quais a alma do homem pode seguramente apoiar-se, venham as tempestades que vierem. Nenhuma das heresias que negam a divindade de Cristo poderá envergonhar o homem que se apega a estas palavras: "No princípio" e "era". Houve um Princípio quando outras coisas receberam seu ser, mas Cristo já estava naquele Princípio, e assim existia antes que as coisas recebessem seu ser.
Há muita discussão entre os intérpretes, com pouco propósito, para encontrar diferentes sentidos desta palavra "Princípio". Não vou incomodar você com isso: o texto de Marcos deixará claro o significado, "o princípio da criação, que Deus criou" (Marcos 13.19). "Qual nunca houve desde o princípio da criação, que Deus criou". Aqui está claro. O princípio da criação que Deus criou é o mesmo que Moisés menciona em Gênesis 1.1: "No princípio Deus criou os céus e a terra."
É notável que Moisés, com quem Deus falou face a face, e João o Evangelista, que se reclinou no peito de Cristo, tenham ambos o mesmo preâmbulo: "No princípio", diz Moisés; e "No princípio", diz João. Pensa-se que João faz alusão a Moisés, apenas com esta clara diferença: Moisés, falando da Criação do mundo, diz "No princípio Deus criou os céus e a terra." Ele fala de um mundo que foi criado. João, falando de um Verbo que não foi criado, diz "No princípio era o Verbo." Ele não diz que foi criado, como se Cristo fosse uma criatura; mas quando todas as outras criaturas foram criadas, Cristo era. Cristo possuía existência quando elas apenas começavam a existir; portanto, ele existia antes delas. Aquilo que estava no princípio deve necessariamente ser eterno. Por quê? Porque antes das criaturas começarem a existir, não havia nada senão Deus.
O que havia antes do Princípio?
Isso nos conduzirá ao Abismo da Eternidade, o que poderia existir antes da Criação. Aqui, a fé talvez adentre a escuridão da Eternidade, onde pode se perder e nada enxergar, exceto Deus antes de tudo, Deus depois de tudo, e Deus em tudo. Antes da Criação, nada havia além de Deus. Cristo existia antes da Criação; quando de ela começar a existir, ele já existia. Portanto, Cristo era eterno, não havia princípio antes disso. De fato, Deus existia antes da Criação, mas Deus não tem princípio. Embora haja um princípio de ordem [principium ordinis], não há um princípio de tempo [principium temporis]; como o Pai é primeiro, o Filho é segundo, e o Espírito Santo é terceiro. Aqui há um principium ordinis; Ordem, mas não Tempo em que o Pai, Filho ou Espírito Santo teriam começado a existir. Portanto, Cristo estava no princípio, e tinha existência então. Não houve princípio até a Criação. Assim, Cristo existia desde toda a eternidade.
É possível confirmar isso com mais firmeza porque o Espírito Santo, por toda a Escritura, quando quer expressar Eternidade, costuma fazê-lo assim: Tal coisa era antes do mundo; isto é, era Eterna. Salmo 90.1,2: "SENHOR, tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração. Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, mesmo de eternidade a eternidade, tu és Deus". Como ele prova isso? Porque ele existia antes que as montanhas ou a terra fossem feitas. Cristo existia antes do mundo, portanto é Deus de eternidade a eternidade. João 17.5: "E agora glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que tinha contigo antes que o mundo existisse". Isto é, desde a Eternidade.
Considere uma passagem clara (para aqueles que claramente entendem que Cristo é chamado de Sabedoria, como indubitavelmente ele é) em Provérbios 8.22 até o versículo 30; uma passagem à qual nosso Evangelista parece aludir aqui, e que é completamente paralela. Nela, a Sabedoria diz: "O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos". Exatamente como no texto "No princípio era o Verbo". "O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde então, e antes de suas obras. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra. Quando ainda não havia abismos, fui gerada, quando ainda não havia fontes carregadas de águas. Antes que os montes se houvessem assentado, antes dos outeiros, eu fui gerada".
Outro testemunho da eternidade de Cristo está no Tipo de Melquisedeque, Hebreus 7.2,3: "rei de justiça, e depois também rei de Salém, que é rei de paz; sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida, mas sendo feito semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre". Que razão temos para venerar, como diz Tertuliano (não apenas admirar, mas venerar) a plenitude das Escrituras! Até mesmo o silêncio das Escrituras fala de profundos Mistérios. O Apóstolo, argumentando a partir das Escrituras sobre a eternidade de Cristo, nada fala do pai ou da mãe de Melquisedeque. Moisés, falando dos personagens notáveis nas Escrituras, costuma falar de sua filiação, quando começaram e quando morreram. Mas o Apóstolo, quando fala deste Sacerdote, diz que ele não tinha pai, nem mãe.
Outra passagem sobre a eternidade de Cristo está em Miqueias 5.2, onde fala-se tanto da geração temporal quanto da eterna do Filho de Deus: " E tu, Belém Efrata, posto que pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que governará em Israel". De ti me sairá. Isso se refere ao seu governo temporal. E, aqui, fala-se de sua geração eterna: "e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade". No princípio era o Verbo. Isto é, Cristo existia desde a eternidade. Ele tinha existência antes que os maiores viessem a existir. E isto serve brevemente como explicação dessa proposição.
Aplicação
Agora, vamos à Aplicação, pois pretendo ser o mais breve possível. O que vocês ouviram sobre a eternidade de Cristo, de ele existir antes que as criaturas fossem criadas, lhes proporcionará: primeiro, conforto; segundo, dever.
Primeiro, como conforto: isso nos permite ver que nossa felicidade se apoia sobre um fundamento eterno, sobre aquele que estava no princípio, antes que qualquer criatura começasse a existir. E o que poderá derrubar aquele edifício cujos alicerces estão estabelecidos na eternidade? Serão as criaturas, que surgiram apenas ontem? O que podem elas fazer para desfazer o que o Deus eterno ordenou antes que o mundo existisse?
Esse é o fundamento de tudo, Efésios 1.4: "Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor". A data da nossa salvação é anterior à existência do mundo; portanto, nada no mundo poderá prejudicá-la, muito menos aboli-la. Ela repousa sobre aquele que estava no princípio e que estará depois do fim; sobre aquele que é Alfa e Ômega; mais antigo que o princípio e mais duradouro que o fim das criaturas.
Ah, pobres criaturas! Houve um tempo em que elas não existiam, mas então ele já existia. No princípio era o Verbo; e virá um tempo em que elas não mais existirão; mas não há tempo em que se possa dizer que Cristo não existe. O diabo é uma criatura. Será ele capaz de desfazer o que o eterno estabeleceu? Ele não existia quando Cristo existia; e embora agora ele viva para sempre a fim de estar em tormento, chegará o tempo em que ele não será mais um tentador. Mas, Cristo certamente ainda será um Salvador.
Habacuque 1.12: Veja que fonte de consolação brota desta consideração da eternidade de Cristo: "Não és tu desde a eternidade, ó Senhor meu Deus, meu Santo? Nós não morreremos". Certamente, nós que temos um Salvador eterno seremos livres da morte eterna, não morreremos. Esta é a porção de todos aqueles que nele se apegam pela fé. Nosso Salvador eterno ama fazer todas as coisas como ele mesmo. Para que você não tema falta de amor ou poder, tanto seu amor quanto seu poder são eternos, assim como ele mesmo é. Ele tem benignidade eterna em si e pretende demonstrá-la a nós, Isaías 54.8: "Com um pouco de ira escondi a minha face de ti por um momento; mas com benignidade eterna me compadecerei de ti, diz o Senhor, o teu Redentor". E seu poder é tão eterno quanto seu amor. Isaías 26.4: "Confiem no Senhor perpetuamente, porque no Senhor JEOVÁ há força eterna." A consideração destes dois pontos deve nos encher de consolação eterna, como Paulo diz em 2Tessalonicenses 2.16: "em graça nos deu uma eterna consolação e boa esperança". Aquele que estava no princípio estará conosco até o fim; sim, e também no fim de nossos dias. É um grande conforto quando uma pessoa está para morrer, pensar em quem sua salvação depende; ora, depende de um Redentor eterno, que não morre.
Haverá um tempo em que deveremos nos afastar de todas as criaturas e não ter mais nada com aquelas coisas que nos são tão agradáveis no mundo. Haverá um tempo em que entraremos na eternidade; e lá estará Cristo. As criaturas em que nos deleitamos não permanecem; mas o Deus a quem vamos, este permanece; "De eternidade a eternidade, tu és Deus." Aqui está um conforto vivo para uma criatura desfalecendo.
Em segundo lugar, o dever: se Cristo estava no princípio, antes de todas as criaturas, então não nos permitamos estimar nada antes dele. Esta é uma lição que aprendemos daqui. É expressamente dito sobre Cristo em Colossenses 1.17: "E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele". Ele é antes de todas as coisas em relação ao seu próprio ser: permita que ele seja antes de todas as coisas, e acima de todas as coisas, em nossos afetos. Ele era antes de todas as criaturas — oh! não o deixemos vir depois delas em nossos corações. No princípio era o Verbo, quando não havia riqueza, lucro, prazer, prestígio, com os quais os homens agora se fascinam. Cristo é antes de todas estas coisas, por que deveria vir depois delas na estima dos homens?
Entre os pagãos, eles colocavam sua felicidade no exercício da virtude; e ainda assim alguns deles clamavam: "Virtus post nummos, quaerenda pecunia primùm" (Primeiro busque o dinheiro, a virtude vem depois). Eles primeiro se esforçavam para conseguir uma boa posição financeira, e depois buscavam boas qualidades e disposições. Assim é com muitos cristãos que, em suas doutrinas e profissões, colocam sua felicidade e comunhão com Cristo depois das riquezas; deixam Cristo vir depois. Quem de nós não se admira e não se envergonha dos gadarenos, que preferiram seus porcos a Cristo, preferindo que ele saísse de suas terras a se separarem de suas varas? Certamente, nós, na prática, fazemos o mesmo quando preferimos nossas luxúrias suínas ao invés de abraçar e obedecer nosso bendito Salvador. Estamos dispostos a questionar os judeus por gritarem "Não ele, mas Barrabás" e, ainda assim, nossas ações falamo alto: "Não ele, mas o mundo; não ele, mas a carne."
É melhor imitar o bom Tremélio, que era judeu de nascença. Quando tornou-se cristão, em referência ao que seus compatriotas judeus que haviam dito outrora — "Não ele, mas Barrabás" — Tremélio fez deste o seu lema: Non Barabbam, sed Christum (Não Barrabás, mas Cristo), para indicar que havia renunciado tudo pelo Senhor Jesus Cristo. Que este seja seu lema: Não o mundo, mas Cristo; não a criatura, mas Cristo; não a carne, mas Cristo. Ele era antes de tudo, e estará antes de tudo em minha estima. "Quem tenho eu no céu senão a ti?" (Salmo 73.25). Este é o dever que devemos aprender daqui.
Em segundo lugar, visto que Cristo é eterno, confie nele para coisas eternas; espere essas coisas daquele que é um Pai eterno (Isaías 9.6). Você acha que um Pai eterno guardará apenas bênçãos temporais para seus filhos? Aquele que era desde o princípio providenciou algo que existirá depois do fim, para a eternidade, para você, se você o buscar. Lembre-se do que diz o Apóstolo em 2Coríntios 4.18: "Não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas". Olhe para essas coisas eternas, confie num Salvador eterno, que primeiro as adquiriu e depois as providenciou para você. Ele foi à frente preparar coisas celestiais para você.
A graça é algo que tem algo de eternidade nela. O caminho da santidade é chamado de caminho eterno pela Escritura — "Guia-me pelo caminho eterno" (Sl 139.24).
Busque a Cristo por isso. Pois seu Salvador eterno lhe dará aquilo que tem influência na eternidade; assim é a graça. É uma semente imortal que gera sua glória, e isso também é eterno. Você tem uma promessa em Isaías 45.17: " Israel é salvo pelo Senhor, com uma eterna salvação".
Aquele que existia antes do mundo tem felicidade sem fim para todos os que nele creem.