João Calvino é um daqueles nomes que sempre dividirão livros de teologia. É possível se distanciar dele, mas um ponto não deixa de ser referência porque estamos longe dele. Sempre há o risco de elevá-lo sem querer a uma posição indevida, mas o esforço para ignorá-lo precisa ser consciente e intencional.
Aqueles que tentam escapar do teólogo de Genebra geralmente o associam apenas à sua doutrina da predestinação. Mas Calvino é bem mais do que um item doutrinário: sua influência desafia classificações simples.
O Homem Por Trás da Doutrina
Nascido em 1509, na França, Calvino iniciou sua trajetória nos estudos clássicos, mas sua vida tomou outro rumo após um profundo e súbito encontro com a fé protestante. Essa “conversão repentina”, como ele a chama, moldou não apenas seu pensamento, mas todo o curso da Reforma em Genebra e além.
Sua obra mais emblemática, As Institutas da Religião Cristã, vai muito além de um tratado teológico. Ele diz que está expondo a “Suma da Piedade” — o que, talvez sem intenção, demonstra um leve contraste com a também importante Suma Teológica de Aquino. Isto é, Calvino escreveu teologia para formar corações e mentes, convidando tanto eruditos quanto leigos a uma vida de piedade autêntica. Apenas sua capacidade de sistematizar e ir “direto ao ponto” já o tornam um autor relevante.
Seu desejo de convencer o rei Francisco I sobre a legitimidade da fé reformada no prefácio das Institutas mostra como, para Calvino, fé e vida pública estavam entrelaçadas—uma pauta ainda atual.
Cristo sobre Tudo: Um Legado Que Não Se Limita à Igreja
Uma das contribuições mais marcantes de Calvino é sua visão integrada da vida: não havia para ele separação rígida entre sagrado e secular. Tanto o ferreiro quanto o missionário eram chamados a glorificar a Deus em sua vocação cotidiana—um ideal que ressoa até hoje na discussão sobre trabalho, ética e espiritualidade entre os reformados e além deles.
Genebra, a cidade que ele ajudou a transformar, tornou-se um símbolo de reformas que ecoam até hoje: educação pública, justiça social e infraestrutura urbana. Claro, nem tudo foi perfeito—basta lembrar o caso de Miguel Serveto. Mas a marca de Calvino permanece impressa no tecido social da cidade.
Mas a influência de Calvino ultrapassou as fronteiras genebrinas e confessionais. O historiador alemão Leopold von Ranke chegou a chamá-lo de “fundador virtual da América”, enquanto o filósofo Montesquieu sugeriu que Genebra deveria sempre celebrar seu nascimento (como fizeram em 2009!). Max Weber foi ainda além, ligando as ideias de Calvino ao surgimento do capitalismo moderno. Ainda hoje, esse tópico é discutido com grande fervor.
Da Teologia à Cultura Pop
Algum tempo atrás, a revista TIME reconheceu o impacto duradouro do pensamento calvinista, elegendo o chamado “novo calvinismo” como uma das ideias que moldam os EUA no século XXI. Não é a primeira vez que um movimento com nome parecido ganha proeminência. Mais de um século atrás, na Holanda, o neocalvinismo de Kuyper moldou os Países Baixos por um bom tempo. Podemos discutir se os termos são apropriados ou não, mas seja no século XVI, XIX ou XXI, Calvino ainda inspira debates em áreas tão diversas quanto política, educação e cultura.
A ponte entre Calvino e a cultura popular pode parecer improvável, mas está lá: basta ler as tirinhas de Calvin e Haroldo, onde temas como predestinação, perdão e a natureza humana são tratados com profundidade e humor. Bill Watterson, com formação em ciência política, provavelmente batizou seu protagonista com o nome do teólogo suiço—prova de que grandes ideias sempre encontram novas formas de circular.
Seja nos debates sobre capitalismo, nas políticas sociais de Genebra, ou mesmo nas aventuras de um menino e seu tigre, Calvino segue relevante. Sua visão sobre a complexidade humana e a busca por sentido continuam atuais—um convite permanente à exploração das fronteiras entre fé, razão e cultura.